segunda-feira, 5 de novembro de 2007

ROLAND BARTHES - Semiologia e Cinema

entrevista conduzida por Philippe Pilard e Michel Tardy realizada em Julho de 1964.

O cinema parece oferecer uma certa resistência à análise semiológica. Quais são, na sua opinião, as causas deste fenómeno?


Talvez seja necessário partir do projecto semiológico. O termo e o projecto vêm de Saussure: ele previa uma ciência geral dos signos de que a linguística seria apenas um departamento, é evidente que seria um departamento muito adiantado visto já estar constituído. Partindo deste projecto, pode-se imaginar explorar pouco a pouco um certo número de sistemas de signos diferentes da língua: diferentes essencialmente pelo facto da substância dos signos já não ser o som articulado; podemos reportar-nos, por exemplo, a sistemas elementares cujos significantes são constituídos por objectos; a etnologia estudou bem este domínio (sistemas de comunicação através de cordéis, pedras, ramos partidos, etc.). Mas, quando se chega a uma sociedade complexa como a nossa, sobretudo uma sociedade de massas, esta noção de «objecto», de «matéria significante» torna-se bastante resistente, pela simples razão destes objectos servirem para trocar informações sobretudo marginais; também nos apercebemos de que a comunicação através dos objectos só apresenta uma certa riqueza se for substituída pela linguagem; os objectos devem estar a cargo de um certo discurso. Por exemplo, ao estudar sistemas de objectos como os do vestuário, ou dos alimentos, apercebemo-nos muito depressa de que eles só são significantes porque há pessoas ou jornais que falam do vestuário ou dos alimentos; a tal ponto até que, embora a semiologia não esteja ainda constituída, nos podemos interrogar se ela não estará já condenada, na medida em que ela talvez não tenha na sociedade actual objecto específico, visto que, cada vez que um sistema de comunicação se baseia numa substância que não é a linguagem, há no entanto um momento em que essas substâncias são substituídas pela linguagem. É através disso que reencontramos um estatuto essencial da nossa civilização que é uma civilização da palavra, e isso apesar da invasão das imagens. E é através disso também que podemos interrogarmo­nos se o projecto semiológico não estará rapidamente ameaçado pelos paralinguistas que se ocuparão de todos os discursos dos homens ao falar dos objectos, ao fazê-los significar através duma palavra articulada. E se voltarmos à imagem, é evidente que ela é um objecto misterioso. Será que a imagem significa? É uma pergunta sobre a qual se trabalha, mas por agora só se podem colocar dificuldades, impossibilidades, resistências. A grande resistência da imagem a apresentar-se como um sistema de significação, é o que se chama o seu carácter analógico, ao contrário da linguagem articulada. Este carácter analógico da imagem está ligado no seu carácter contínuo, contínuo que, no caso do cinema, comporta não só um aspecto espacial, mas é reforçado por um contínuo temporal, a sucessão das imagens. Ora, quando os linguistas se ocupam de sistemas marginais à linguagem, como por exemplo a linguagem animal ou a linguagem dos gestos, eles verificam que os sistemas simbólicos, ou seja, os sistemas analógicos, são sistemas pobres, porque não comportam quase nenhuma combinatória. A analogia torna quase impossível combinar de maneira rica e subtil um número restrito de unidades. É por isso que os linguistas se recusaram até agora a consagrar como linguagem os conjuntos simbólicos como a linguagem das abelhas, a linguagem dos corvos, ou a linguagem dos gestos. O símbolo - que eu entendo como uma relação entre o significante e o significado - escaparia deste modo à linguística, e por isso mesmo a uma semiologia rigorosa. Mas, mesmo assim, não se deve abandonar a partida. Pois num filme, e é uma hipótese de trabalho que eu formulo, é claro que há uma representação analógica da realidade, mas, na medida em que esse discurso é tratado pela colectividade, ele compreende elementos que não são directamente simbólicos, mas já interpretados, culturalizados até, convencionalizados; e estes elementos podem constituir sistemas de significação segunda impostos ao discurso analógico e que se podem chamar «elementos retóricos» ou «elementos de conotação». Constituiriam, portanto, um objecto a partir do qual se poderia fazer a semiologia.

Então, a dificuldade surge na delimitação destes dois planos de denotação e de conotação.

Evidentemente, o filme apresenta estes dois elementos de forma inextricáve1. Por exemplo, vi ultimamente um filme comercial, O Homem do Rio. Pois bem, este tipo de filme está cheio de signos culturais: quando se vê o arquitecto brasileiro, reparamos que ele está, de uma certa forma, «coberto» de signos que nos dizem que ele é um construtor fantasista, cavaleiro da indústria, etc. A cabeleira, o próprio sotaque, o vestuário, a casa, etc., funcionam como signos. Mas, estes signos, nós só os vivemos num contínuo anedótico que foi captado pela câmara. No entanto, a partir do momento em que a minha linguagem de analista pode conceptualizar um certo número de aparências ou de fenómenos fornecidos pelo filme, há suspeita de signos.

Julga que a fase linguística é absolutamente necessária para os fazer significar?

Isso é uma outra dificuldade porque supõe que aquele que analisa e que apenas faz existir essa separação dos signos através da sua própria linguagem, deve ter uma teoria completa da análise semiológica, e deve ver, a qualquer instante, qual é o lugar do analista nos sistemas que descreve, visto que é obrigado a dar-lhes um nome. Utiliza uma metalinguagem, quanto mais não seja para dar um nome aos significados. Se eu quero dar um nome ao que significa a cabeleira, o vestuário e os gestos do arquitecto brasileiro que é, grosso modo, um conceito de aventura construtora latino-americana, sou obrigado a empregar uma linguagem muito cultural, muito «intelectual». É uma grande dificuldade para a análise semiológica, mas é ao mesmo tempo uma prova de validade da pesquisa. Pois, pode-se pensar que, nas ciências humanas, só são fecundas as ciências que pensam, ao mesmo tempo que o seu objecto, a sua própria linguagem. O primeiro exemplo histórico foi dado pelo marxismo, que é uma visão do real que pensa aquele que a fala. O segundo exemplo seria a psicanálise, visto que não se pode fazer psicanálise sem pensar o lugar do psicanalista no sistema psicanalítico. Não se pode tratar semanticamente de um objecto como o cinema, unicamente com uma simples nomenclatura puramente denotada, uma nomenclatura inocente.

Não haverá um outro problema que se levanta, na medida em que o cinema utiliza várias substâncias significantes, a substância linguística e a substância icónica para só conservar duas? Não haverá um problema na relação estrutural entre essas mensagens diferentes? A unidade não se fará unicamente ao nível da conotação?

É um problema que, actualmente, não tem resposta e, ao mesmo tempo, apercebemo-nos de que a decisão de processo terá graves consequências. Será necessário reconstruir o sistema de um diálogo por um lado, e o sistema das imagens pelo outro, depois, estabelecer um sistema extensivo a estes sistemas subsidiários, ou então será necessário entrar com uma visão gestaltista no conjunto das mensagens para aí definir unidades originais, mas não estamos muito fixados neste ponto. Alguns americanos, especialmente Pike, abordaram o problema; Pike encarou situações da vida corrente, onde há uma mistura de gestos e de palavras; é um caso de sistemas complementares cuja substância é diferente.

Não pensa que o método analítico possa ser mais indicado, visto que existem sistemas que apenas utilizam uma só destas substâncias K (a rádio, por exemplo)? E há filmes que praticamente não utilizam a fase linguística.

Precisamente, vi muito recentemente em projecção privada uma curta metragem de Baratier, Èves futures. Trata-se da construção de manequins para lojas e não há comentário. Mas, por um lado, há uma música que tem evidentemente muita importância e, por outro lado, a própria ausência de comentário funciona como o significante de alguma coisa: isso acrescenta uma certa ambiguidade, uma certa desumanidade ao filme... Creio que, primeiramente, seria necessário trabalhar sobre a imagem sozinha, e tomar os casos mais evidentes de significação, ou seja; os estereotipos. Poder-se-ia pegar em alguns filmes comerciais e aí salientaríamos os «conotadores», esses signos simbólico-culturais; a partir daí poder-se-iam fazer inventários, e talvez em seguida se visse mais claro. E, poder-se-ia então estabelecer uma espécie de retórica do filme, retórica no sentido quase pejorativo, ou seja, esse enfatuamento estereotipado das mensagens, e somente em seguida se poderiam abordar os filmes desvio relativamente a esse código retórico. Vi, um a seguir ao outro, O Homem do Rio e O Silêncio de Bergman; é evidente que é muito mais difícil analisar de forma retórica O Silêncio do que o outro filme. Pois, em Bergman, a retórica, enquanto conjunto de signos estereotipados, é constantemente combatida, desviada, destruída, aliás, muitas vezes a favor de uma outra retórica muito mais individual e subtil. Portanto, pode-se pensar a partir deste momento que a análise semiológica desembocará um dia numa estética...

Você propõe partir da «imagem sozinha». Seria necessário utilizar filmes concebidos para um puro consumo visual, ou seja, o cinema mudo, e isso levanta o problema de um estudo diacrónico, ou então seria necessário utilizar filmes contemporâneos cujo elemento sonoro fosse posto de lado?

Penso que no início do estudo é necessário abstrair do aspecto diacrónico. Poder-se-ia tomar como objecto uma dezena de filmes comerciais, surgidos durante dois ou três anos. Poder-se-ia tomar, por exemplo, os filmes onde aparece Belmondo: o recurso a Belmondo, há três ou quatro anos, implica uma certa homogeneidade de público, de leitores de códigos. Partindo da unidade de leitura, poder-se-ia razoavelmente inferir uma unidade do código. O mesmo acontece com Gabin... Nunca se pensa na unificação através dos actores e, no entanto, é um óptimo factor sociológico de homogeneização do público e, a partir daí, da leitura. Há, é evidente, outras unidades que se impõem ao espírito, mas são muito mais complexas: o western por exemplo, ou as comédias «muito francesas», aquelas onde Gabin representa muitas vezes, do género de Monsieur, onde se vêem meios sociais franceses muito típicos...

Não crê que, para definir os diferentes campos semânticos no interior do cinema, se possa encarar uma análise funcional, do tipo da de Propp, análise que nos permitiria talvez descobrir que através dos filmes de categorias diferentes, há uma sucessão de funções equivalentes, nos western, nos filmes policiais, etc.


Isso levanta uma outra questão. Pode-se, por um lado, procurar estabelecer a retórica do filme, ou seja, um inventário de signos descontínuos, os conotadores. Isso é o que os linguistas chamam o plano paradigmático: procura-se reconstituir léxicos. Mas, por outro lado, há uma outra direcção de trabalho que consiste em reconstituir a estrutura das narrativas, aquilo a que Souriau chamava a «diegese». Para esta questão, temos os trabalhos de Propp sobre os contos populares russos, os trabalhos de Lévi-Strauss sobre o mito. E estes dois tipos de análise, embora façam parte do mesmo complexo, não se confundem. Esta análise funcional é talvez mais importante, mais rica, mais urgente, do que a análise retórica. Nesta óptica adivinha-se, pouco a pouco, como é que um filme é feito, do ponto de vista operatório: é uma espécie de dispatching, de rede distributiva de situações e de acções, tal situação engendrando tal alternativa da qual se escolhe apenas uma das possibilidades, e assim por diante. Isso foi o que Propp estudou relativamente ao conto russo. Há, portanto, uma ampla rede estrutural das situações e das acções da narrativa; mas como essa rede é suportada por personagens, o que Propp chama dramatis personae, cada personagem define-se atributivamente por um certo número de signos que dependem da semiologia. No caso do Homem do Rio por exemplo, a situação leva a, num dado momento, mobilizar um indivíduo X, que detém determinado estatuto (sem jogo de palavras...), e está-se ainda no plano da estrutura; mas, a partir do momento em que definem esse indivíduo como um arquitecto brasileiro, capitão da indústria, temeroso, cheio de garbo, etc., fazem intervir elementos semiológicos. Os atributos do indivíduo não existem de essência, o indivíduo é primeiramente definido pelo seu lugar na rede da narrativa. É somente em seguida - em seguida, idealmente, bem entendido - que o «declinamos», que estabelecemos com ele o paradigma. No caso das personagens secundárias, é talvez um pouco mais complicado, mas no caso das personagens principais distinguimos facilmente uma tipologia possível. No caso das personagens interpretadas por Be1mondo, o paradigma varia pouco, e é ao nível da rede que as mudanças surgem.

Sempre na linha de Propp, pode-se evidentemente imaginar que os filmes sejam ventilados em categorias que não são unicamente cinematográficas, e onde se encontrariam contos, bandas desenhadas, emissões de televisão, etc.

Absolutamente. E é por isso que todas estas pesquisas têm um grande futuro à sua frente. Há muito a trabalhar nessas direcções. E especialmente no domínio da análise estrutural das formas de narrativas; pois, ao analisar filmes, folhetins radiofundidos, romances populares, bandas desenhadas e até faits divers ou gestas de reis ou de princesas, etc., talvez se encontrem estruturas comuns. Chegaríamos, assim, a uma categoria antropológica do imaginário humano...

Subsiste que o produto sociológico que é o cinema é, no entanto, muito diferente do que é um conto popular. Na medida em que muitos filmes são feitos, conscientemente, ao nível da produção e da realização, para responder às necessidades reais ou supostas do público. Por consequência, não haverá um certo número de precauções operatórias a tomar antes mesmo de abordar este estudo?

A pergunta que faz é fundamental; e, neste momento, não se lhe pode responder. De facto, a questão que se levanta é saber se uma antropologia do imaginário é possível. Se conseguíssemos encontrar as mesmas estruturas num filme e em contos arcaicos, chegaríamos a uma grande probabilidade do plano antropológico, senão, remetemos tudo para a sociologia. A aposta é portanto muito importante, e é verdadeiramente uma aposta, porque não podemos ainda dizer nada acerca disso. Daí vem esta espécie de tensão que existe entre a antropologia e a sociologia. Seria necessário saber se certas formas de narrativa são específicas de certas civilizações.

Todas as direcções de pesquisa que indica residem, portanto numa espécie de postulado...

É evidente. Mas isso não pode ser evitado. É uma hipótese de partida que deve, se assim se pode dizer, o essencial da sua coragem à distinção saussuriana entre a língua e a fala. Separa-se o código e as mensagens, e essa distinção é muito libertadora. O empreendimento semiológico ou o empreendimento estruturalista não negam de forma alguma a necessidade da análise sociológica. Limitam-se a determinar o seu lugar no conjunto da análise: a sociologia torna-se então na ciência que aproxima as «falas», as «mensagens» da sua situação, do seu contexto social, dos elementos individuais, culturais, etc. Que haja ao nível de grupos sociais, hábitos de «fala» mais ou menos estereotipados, mais ou menos codificados, é evidente. É por isso que se concede hoje muita importância às noções de «idiolecto», de «escrita» em Literatura, que são de uma certa forma «sub-códigos», estados intermédios entre a língua e a fala. No cinema há também sub-códigos: há fi1mes para certos meios, e cuja estrutura muito deve a este ou aquele meio. Mas há, talvez do outro lado uma grande «língua» do imaginário humano. É isso que está em questão...

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